sexta-feira, setembro 19, 2008

Brasil cresce em ritmo exasperantemente lento, diz Giannetti

Para economista do Ibmec-SP, aumento do emprego formal não é suficiente, é preciso reforma do mercado

SÃO PAULO - O economista e professor do Ibmec São Paulo Eduardo Giannetti da Fonseca é crítico em relação aos números apresentados na Pnad 2007. Segundo ele, o aumento do trabalho com carteira assinada não deve ser comemorado: é preciso uma ampla reforma do mercado de trabalho. Veja abaixo a entrevista:

Qual sua avaliação da Pnad 2007?

Os números de modo geral são positivos, mas o ritmo da melhora é exasperantemente lento. Apontam que estamos indo em uma direção boa, mas em um ritmo realmente desapontador pela sua lentidão. Em um ano excepcional para a economia que foi 2007, em que o PIB cresceu 5,2%, as melhorias são muito tímidas do ponto de vista social. Vou te dar dois pontos que realmente chamam a minha atenção no conjunto de dados. Só 35% da população economicamente ativa no Brasil tem uma situação regular de emprego. Isso significa que mais de 40 milhões de brasileiros não têm qualquer tipo de proteção dos seus direitos trabalhistas. Estão na informalidade ou fora do mercado mesmo. Uma parte pequena deles é o chamado 'auto-empregado', uma pessoa que tem alguma atividade independente, o autônomo, mas um contingente enorme, algo em torno de 30 a 35 milhões de brasileiros está vivendo na maior precariedade do ponto de vista do mercado de trabalho.

O crescimento econômico não está conseguindo incluir esses milhões de brasileiros?

Não, e isso é sinal de que existe alguma disfunção institucional no mercado de trabalho brasileiro. É um número muito alto de trabalhadores fora da formalidade, e diz respeito ao desenho das regras do funcionamento do nosso mercado de trabalho. São três pontos. Nós temos uma legislação trabalhista que é anacrônica, incrivelmente rígida, detalhista, complexa e excludente, porque nega oportunidade de emprego a muitos brasileiros.

Nós temos encargos sociais extremamente elevados. Existem alguns setores da economia que, ao contratar um trabalhador paga-se mais ao governo em impostos do que paga-se diretamente ao trabalhador. Há uma coisa muito ineficiente no Brasil que é o uso da folha de salário como instrumento de arrecadação para políticas assistencialistas. Mas não é apenas o INSS ou a Previdência. Usa-se a folha de salário no Brasil para fazer outro tipo de recolhimento de tributo, por exemplo para pagar o piso do salario mínimo dos trabalhadores, para pagar a aposentadoria rural, que na verdade é assistência social. Então você onera o fator trabalho desnecessariamente e diminui o nível de emprego na economia formal. Nós temos encargos excessivamente elevados, dentro da rigidez da CLT, que insere uma série de custos que poderiam ser revistos ou negociados e que aumentariam a inserção de brasileiros na economia formal.

Eu lembraria, em último lugar, ainda em relação a mercado de trabalho, a incerteza do contrato de trabalho no Brasil. O País é campeão mundial de ações trabalhistas. Nós temos hoje algo em torno de 2,3 milhões litígios em relações de trabalho por ano. Ou seja, somos recordistas mundiais em conflitos legais no mundo das relações de trabalho. A incerteza contratual é outro agravante que empurra para a informalidade. O empresário fica muito temeroso de contratar e depois ser acionado na justiça. Ele para não correr o risco e evitar litígio, acaba optando pela não-contratação formal.

Qual é o tamanho da economia informal no País?

Tem um estudo da consultoria McKinsey do final de 2006, que mostra o tamanho da economia informal no Brasil. Alguns números impressionam: 85% das pequenas empresas não recolhem todos os tributos exigidos pelo governo; 72% da construção civil atua na ilegalidade, por conta da mão de obra; 60% dos trabalhadores não tinham registro em carteira - isso caiu um pouco, hoje há 35% com carteira assinada. E mais: 35% dos programas de computadores são pirata. Se o Bill Gates começasse a Microsoft num fundo de garagem no Brasil, provavelmente estaria até hoje no fundo de garagem.

Esse 'recorde' de formalização que os números da Pnad 2007 mostram tem pouco a ser comemorado?

Não há o que comemorar. Deveria ser uma matéria de primeiríssima preocupação para a sociedade brasileira. O que há de errado nesse País é que condena 40 milhões de cidadãos a viver fora da lei. Isso tem que ser colocado em perspectiva e comparativamente ao restante do mundo. É uma anomalia brasileira. O problema dessas empresas que estão na chamada economia informal, ou subterrânea, é que são condenadas a permanecer pequenas e precárias. Elas não têm acesso a crédito, não podem entrar no mercado de capitais, o nível de produtividade delas é muito baixo, elas mantém a economia brasileira muito aquém do seu potencial. Vamos ter que fazer uma ampla e profunda reforma do mercado de trabalho no Brasil.

E você tem visto preocupação com essa questão?

De jeito nenhum. Ela está fora da agenda desse governo. É uma visão míope achar que essa melhoria na margem, que é bem vinda, dá conta da dimensão do problema que nós temos pela frente. Essa é uma visão míope, pois vê muito nitidamente o que está perto e perde de vista o conjunta. Celebra a arvore e perde de vista a floresta. O conjunto do mercado de trabalho no Brasil é dos mais anômalos da economia mundial. Você só tem paralelo dessa questão com países de nível de renda muito inferior ao brasileiro.

Seria urgente então uma revisão completa da legislação trabalhista? Quais são os pontos prioritários a ser trabalhados para aumentar o nível de emprego formal?

Precisamos reduzir o detalhismo da legislação e fazer uma aposta na liberdade contratual, para negociação livre das partes, dentro de limites, para o que é viável. Porque senão aumenta a precarização das relações de trabalho. Tem que atacar em três frentes: a legislação, os encargos e a incerteza contratual, que também é um problema muito sério no Brasil. Se apurar os passivos trabalhistas hoje existentes no Brasil, um grande número das nossas empresas formais estaria condenada a desaparecer porque não tem como pagar. Isso ocorre não porque o empresário brasileiro seja desonesto. O empresário brasileiro não é muito diferente do empresário em qualquer parte do mundo. isso ocorre porque nossa legislação é labiríntica e se criou uma indústria de ações trabalhistas. As regras do jogo são disfuncionais.

O que mais chama a atenção nos números da Pnad?

Outro ponto que gostaria de destacar, sob um enfoque crítico, é o saneamento básico. Até hoje, apenas 49% dos domicílios não estão ligados á rede coletora de esgoto. O Brasil está no século XXI sem resolver um problema que os países desenvolvidos resolveram no século XIX, de saúde pública. E de dignidade humana. O investimento em saneamento no Brasil é hoje de R$ 5,5 bilhões por ano, apenas 0,2% do PIB. Ou seja, 0,5% do total que o governo arrecada em impostos. Nesse ritmo, só vamos completar saneamento básico no século XXII. Não tem marco regulatório, há uma indefinição de responsabilidade e também não se criam condições para que isso possa ser feito pela iniciativa privada. Obra é de longo prazo e não rende frutos eleitoreiros. O problema vai sendo deixado para depois. Querer comemorar esses números é perder de vista a gravidade do quadro que ainda prevalece no Brasil.

O Brasil está melhorando?

Nós estamos melhorando, mas em ritmo lento. Eu esperaria que um governo com o perfil do governo Lula tivesse uma desenvoltura muito maior para tratar dessas questões, que são basicamente a incorporação de um número maior de brasileiros numa normalidade e no mercado de trabalho e uma infra-estrutura de saneamento e qualidade de vida equivalente ao nível de renda que o País já tem.

Quais são os pontos positivos nos números de 2007?

O que aparece com mais força nos números são o acesso a bens de consumo e bens de tecnologia da informação. O crescimento do número de domicílios com acesso a internet é realmente impressionante. Passou de 8,6% em 2001 para 20,4% em 2007. Esse é um salto importante e bem-vindo.

Isso é um reflexo da elevação da renda do brasileiro?

É uma tecnologia que não exige grandes investimentos em infra-estrutura e portanto contorna nosso problema crônico, que é a ação no longo prazo. A mesma coisa com respeito a telefonia celular. Felizmente essas tecnologias não são muito onerosas em termos de formação de capital prévio e investimento em infra-estrutura. Sua disseminação é rápida e mostra uma abertura da sociedade brasileira para o novo.

Esse acesso a tecnologia pode ajudar os brasileiros a galgarem melhores posições no mercado de trabalho?Os números da Pnad 2007 mostram também que aumentou o acesso à universidade.

Em relação a ensino superior, eu tenho sérias dúvidas. Muito do que se passa sob o nome de 'ensino superior' no Brasil na verdade não é. São cursos muito fracos, sem nenhum nível de exigência e que praticamente vendem o diploma. Não há realidade. Há uma inflação de títulos acadêmicos no Brasil. Se fôssemos ter um critério de país desenvolvido para o que é realmente o ensino superior no País, os números seriam muito diferentes. Os números do Pnad são sim agressivos, mas não há realidade. O MEC está tentando retirar a credencial de muitas instituições, mas não está conseguindo vencer essa batalha. Dificuldade de política de sanear o ensino superior no Brasil. Há muitos cursos em áreas como direito, administração que são caça-níqueis, talvez nem cursos técnicos poderiam ser. E a população, desinformada, se ilude com a compra do diploma. Esse aumento de freqüência no ensino superior no Brasil é um número completamente artificial, não há como imaginar que de fato isso esteja acontecendo para valer.

Programas como o ProUni de incentivo à entrada nas universidades têm algum peso nesses números?

Não acho que o crescimento do número total de alunos nas universidades seja conseqüência do ProUni. O ProUni muda um pouco a composição, mas o que houve é uma expansão descontrolada da oferta de vagas, ou pseudo-vagas, em instituições de pseudo-ensino superior. é uma inflação de credenciais acadêmicas, sem realidade.

Essa questão da atual crise do sistema financeiro americano que está reverberando pelas bolsas mundo afora, à medida que se torna sistêmica, pode prejudicar o crescimento do País? Podemos ser afetados?

Ninguém passará totalmente imune por essa turbulência, por essa desaceleração da economia mundial. Mas felizmente hoje o Brasil está muito bem posicionado para absorver essa piora do cenário externo sem maiores traumas. Tendo a crer que é a primeira vez em pelo menos duas décadas que o Brasil consegue lidar com uma deterioração do ambiente externo sem ser afetado de maneira dramática. O Brasil vivia um quadro de hipersensibilidade às mudanças da economia global. Uma gripe lá fora virava uma pneumonia aqui dentro e nós íamos para a UTI. Hoje esse quadro mudou por completo. Eu não chegaria ao ponto de lembrar aquela frase do Geisel nos anos 1970, quando ele dizia que o Brasil era um ilha de prosperidade num mar turbulento. Mas o Brasil de fato é uma ilha de estabilidade numa economia revolta.

Porque nós soubemos usar o bom momento da economia mundial nos primeiros anos da atual década para promover um profundo ajuste das nossas contas externas, e isso hoje é um seguro que nós temos contra a piora do mundo. As nossas reservas cambiais, os nossos indicadores de solvência externa, a melhoria do perfil da dívida pública do governo, da dívida pública interna. Então não temos mais aquele quadro da hipersensibilidade à piora do mercado global, mas as nossas condições internas para crescer de maneira sustentável ainda são, na melhor das hipóteses, medianas.

As condições internas para o crescimento do País são medíocres?

Nós temos hoje um limite de velocidade de crescimento sem gerar desequilíbrio que é muito baixo, de 4%, 4,5% ao ano. Como a população economicamente ativa (PEA) ainda cresce no Brasil 2% ao ano, pois ela reflete o crescimento demográfico de 20, 30 anos atrás, isso significa que o PIB per capita no Brasil cresce ridículo, 2% a 2,5% ao ano. O PIB per capita, ao final das contas, cresce a um número muito baixo. A pergunta que nós temos que nos fazer é porquê isso acontece.

E qual seria a resposta?

A minha resposta tem duas partes. A primeira é o gigantismo do Estado brasileiro. Ele arrecada 38% do PIB, ele apresenta um déficit nominal de 1,5% a 2% do PIB, ou seja 40% da renda do trabalho do setor privado dos brasileiros de um modo geral é drenada para o setor público e a capacidade de investimento do Estado brasileiro mal atinge 2% do PIB.

Arrecada-se muito e investe-se pouco, portanto.

Exatamente. O Estado brasileiro é um despoupador. O governo Lula vem apresentando esse quadro de fazer ajuste fiscal por meio do aumento da carga tributária. E o aumento da carga tributária se traduz muito mais em gasto corrente do que em aumento de investimento.

Com toda a melhora de investimento nos últimos anos, temos um dos números mais baixos de formação bruta de capital fixo do mundo, em torno de 18% do PIB. Enquanto países como a Índia investem 28% do PIB, a China atinge espantosos 40% do PIB e os países de maior crescimento investem de 25% a 30% do PIB. Esse é o primeiro fator, que chamamos em economia de crowding-out fiscal. No fundo a idéia de que uma parcela muito expressiva da poupança do setor privado está sendo deslocada para financiar gastos correntes do setor público, e isso deprime a capacidade de investimento da sociedade brasileira. O Estado é inflado, ele é muito grande, e gasta de modo a não aumentar a capacidade de criação de riqueza, de produção futura. É um gasto que não tem efeito multiplicador de renda no futuro.

A outra parte da resposta é o ambiente de negócios, hostil ao empreendedorismo. A cultura brasileira é vocacionada ao empreendedorismo, mas nosso ambiente institucional é tremendamente hostil. Isso aparece consistentemente dentro em uma série de relatórios que o Banco Mundial vem produzindo, chamado Doing Business. É o País do mundo que figura em primeiro lugar na classificação do Banco Mundial em termos de tempo requerido para recolhr os impostos devidos. Entre mais de 150 países, o Brasil é onde mais se consome tempo de gestão empresarial simplesmente para pagar impostos. São 7,2 mil horas no Brasil, 70 horas em países como a Irlanda.

Em termos de tendência para 2008, o que podemos esperar? Quando olharmos os dados do Pnad 2008, o que terá avançado?

Eu acho que a toada vai ser a mesma. Nós vamos continuar com uma economia sem grandes turbulências macroeconômicas, o que é algo muito tranqüilizador, nós saímos de uma hipersensibilidade às mudanças de humor do mercado internacional, mas nós encontramos uma realidade interna que na verdade é medíocre. Nós saímos daquele quadro de UTI, de emergência, depois fomos para um quarto de hospital e depois fomos para casa, e descobrimos que nossa vida em casa é muito medíocre. Esse "paciente" encontrou o limite de velocidade em uma situação de normalidade. Esse limite é baixa poupança, baixo investimento, provocados por um Estado que não cabe no PIB e por um ambiente de negócios que não estimula o investimento e o aumento da produtividade.

E se quisermos ir mais atrás, há problemas fundamentais na formação de capital humano. Um dos dados que aparecem nessa Pnad é que ainda temos mais analfabetos do que a Bolívia. De novo, o Brasil chega ao século XXI com indicadores de educação do século XIX. Países hoje desenvolvidos universalizaram o acesso ao ensino fundamental no século XIX. Os EUA, que como nós foram uma ex-colônia, garantiram o acesso ao ensino fundamental em 1890. Nós fizemos isso na década de 1990 - com um século de atraso. E isso, no Brasil, curiosamente é comemorado. Isso deveria mais nos constranger do que orgulhar. E mesmo assim nós fizemos essa universalização com uma qualidade de ensino que deixa muito a desejar. E a tendência é essa: os números vão melhorando, mas num passo exasperantemente lento.

Estadão

18 de setembro de 2.008